Fonte:https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/concorrencia-e-inflacao-no-brasil-licoes-da-ocde
Impossível ter mais de 45 anos no Brasil e não se sensibilizar com o tema da inflação. A história econômica do país nos deixou marcas indeléveis. O que fazeraté o fim do mês para não perder poder aquisitivo? Onde aplicar os rendimentos?
Como controlar a hiperinflação que corrói a renda, turva o horizonte futuro eprejudica investimentos?
Essas questões assolavam-nos diariamente nas décadas de 80 e 90. A inflação elegeu um presidente, destruiu um candidato e imperou solenemente no debate público brasileiro desse período. Com o Plano Real, em 1994, e a utilização de políticas econômicas efetivas para o controle e combate da elevação sistemática dos preços, a inflação deixou de ser um problema grave no nosso país. Seu fantasma, no entanto, perturba vez por outra o sono dos políticos de plantão.
Curiosamente, nos tempos recentes, o fantasma passou a assombrar os
gabinetes dos líderes dos países mais avançados do planeta, que registram ultimamente elevados índices inflacionários. Como uma das consequências, discussões ausentes há algum tempo dos principais fóruns internacionais, como a relação entre concorrência e inflação, voltaram a ganhar relevância.
Não por acaso esse tema vem sendo debatido no Comitê de Concorrência da OCDE. A discussão traz importantes lições para o Brasil. Um primeiro ponto que emerge desse debate é que, de acordo com a literatura econômica recente, o padrão concorrencial não é dos principais determinantes dos índices inflacionários. A influência da concorrência no índice geral de preços, além disso, é menos suscetível de ocorrer no curto prazo e se revela com maior intensidade em prazos mais longos.
O padrão concorrencial afeta o nível de preços em mercados específicos, de acordo com os preceitos da teoria microeconômica. A inflação, por sua vez, consiste na sistemática elevação do nível de preços de uma cesta de produtos previamente definida.
Ou seja, trata-se de um conceito macroeconômico agregado, e não setorial e relativo a um mercado particular. Embora menores níveis de concorrência levem a preços mais elevados em mercados específicos, a sistemática elevação do índice de inflação não resulta direta e inquestionavelmente de menores níveis de concorrência. Para que o padrão concorrencial tivesse um relevante efeito direto e inexorável na inflação, a economia teria que revelar constantes e sistemáticas deteriorações dos padrões concorrenciais nos mercados considerados na cesta de bens e serviços do índice de preços; ou seja, uma hipótese pouco plausível.
A compreensão correta da lógica acima é de suma importância para quem trabalha com defesa da concorrência, principalmente no Brasil. A história econômica contemporânea brasileira é repleta de exemplos de governantes, dos mais diferentes matizes políticos e ideológicos, exigindo ações concretas e imediatas das autoridades concorrenciais frente a surtos inflacionários.
Uma vez que não há evidência robusta indicando que os padrões concorrenciais são determinantes nas oscilações do índice geral de preços, uma modificação substancial da atuação desses órgãos poderia prejudicar o desempenho de suas competências tradicionais. Poder-se-ia criar, no mais, falsa expectativa de que autoridades concorrenciais têm capacidade de efetivamente influenciar a queda da inflação. Isso poderia lhes abalar a credibilidade e gerar perspectivas infundadas com potencial de afetar o desempenho de suas competências e, em último caso, a própria legitimidade das autoridades antitruste.
Outro ponto relevante a ser considerado diz respeito à autonomia das entidades de defesa da concorrência. No Brasil, assim como nas jurisdições mais maduras do mundo, confere-se a devida autonomia a esses entes justamente para evitar que haja pressões políticas descabidas na análise de processos antitruste. Ao preservar a autonomia dos entes responsáveis por esses processos preserva-se a segurança jurídica, a previsibilidade negocial e a coerência regulatória tão importantes na atração de investimentos e no funcionamento adequado dos mercados. Excessiva pressão política sobre autoridades de concorrência frente a surtos inflacionários poderia desvirtuar esse pressuposto.
Por último, existem duas vertentes de atuação para órgãos antitruste em cenários de alta inflação que revelam notáveis e inquestionáveis efeitos positivos. A primeira diz respeito ao monitoramento mais cuidadoso e à atuação efetiva em situações em que o contexto inflacionário afeta a concorrência. Isso pode ser realizado, por exemplo, por meio de ações que contribuam para conferir maior transparência aos preços e à qualidade dos produtos ofertados para consumidores e competidores, uma vez que processos inflacionários prejudicam a capacidade de discernimento e comparação desses ítens.
A segunda vertente relaciona-se ao papel denominado de “advocacia da concorrência”, que são as iniciativas de divulgação das vantagens da política de defesa da concorrência, de disseminação dos seus valores e de propagação da cultura concorrencial perante os diversos stakeholders. São exemplos dessa atuação estudos dos eventuais efeitos esperados de medidas vislumbradas em combate à inflação, como o controle de preços. O Comitê de Concorrência da OCDE enfatiza que as autoridades concorrenciais desempenham papel fundamental para explicar e publicizar os potenciais efeitos deletérios de medidas como essa, que são recorrentemente consideradas em contextos de inflação generalizada.
O Comitê ressalta os aspectos positivos de atuação dos órgãos de defesa da concorrência nas atividades de “advocacia da concorrência” e nos casos em que a inflação propicia ou favorece condutas anticompetitivas. Já com relação à atuação direta com o objetivo de minorar surtos inflacionários, ele revela-se extremamente cético e recomenda cautela.
Os argumentos acima mostram como a colaboração com a OCDE pode ser extremamente profícua nesse contexto específico. A Organização, como locus por excelência de discussão e recomendação de práticas internacionalmente consagradas nas mais diversas políticas públicas, pode apresentar linhas de ação efetivas para as autoridades concorrenciais, especialmente diante desse cenário específico em que esses órgãos são instados a atuar como resultado de pressões inflacionárias. Ao invocar as melhores práticas da Organização para balizar suas atuações, as agências antitruste podem mais facilmente respaldar suas ações e eventualmente se contraporem a eventuais pressões políticas por atuações desvirtuadas da lógica concorrencial.
O que se utiliza aqui como exemplo concreto para a política concorrencial pode ser replicado, igualmente, para outras políticas públicas estratégicas, como demonstração concreta dos inegáveis benefícios da maior aproximação do Brasil à OCDE. De maneira análoga à política concorrencial, as principais políticas públicas brasileiras podem fazer uso do valioso acervo e da expertise da instituição.
É igualmente recomendável que se submetam ao seu competente processo de avaliação, para que sejam cotejadas às melhores práticas e padrões mundiais.
Desse enriquecedor processo certamente serão extraídas recomendações precisas e técnicas de extrema utilidade prática. Espera-se que considerações concretas como essas a respeito das vantagens de maior aproximação do Brasil à OCDE sejam cada vez mais contempladas no atual debate do processo de adesão do Brasil à organização — algo que, infelizmente, ainda ocorre de forma muito abstrata, pouco palpável e por vezes ideologizada.
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PEDRO FLORÊNCIO – Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, com mais de 20 anos de experiência profissional nas áreas de direito econômico e regulatório. Foi secretário especial-adjunto da Secretaria de Relações Externas da Casa Civil, coordenador de Investigações de Práticas Anticompetitivas do Ministério da Fazenda e diretor de Projetos do Conselho Nacional de Justiça. Formado em economia pela USP e em direito pelo Uniceub. Mestre em Direito Econômico Internacional pela University of Warwick (Reino Unido) e doutor em Direito Econômico pela mesma instituição.
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